A expressão “serviço de preto” no sentido de desleixo foi o motivo de o juiz Leonardo Tibo Barbosa Lima, em atuação no Posto Avançado de Piumhi, condenar uma empresa a pagar indenização de R$ 10 mil a um trabalhador.
Ao examinar o caso, o magistrado observou que as ofensas racistas existiram e partiram da própria empregadora, tendo a prática sido repetida pelos demais empregados após a reclamada se referir ao empregado como “preto”. Testemunha ouvida no processo relatou que o autor foi atacado pela ré, que definiu a qualidade do trabalho dele como “serviço de preto”, desejando passar a mensagem de que a execução foi de baixa qualidade.
Na sentença, o magistrado destacou que a verbalização de ofensas, quaisquer que sejam estas, já merece reparação por danos morais. E as ofensas de cunho racista, mais ainda, em virtude do histórico de distinção, opressão, exclusão, menosprezo, humilhação e marginalização experimentado pelos negros no país desde a época da escravidão, período no qual era negada a sua condição de ser humano, e que geram reflexos estruturais até os dias atuais.
O magistrado registrou ainda:
“A estrutura social está arquitetada para diminuir a relevância e importância de manifestações racistas, de modo a gerar o sentimento de desculpa no agressor, que faz uso costumeiro de alegações de que falar sobre a cor de alguém não pode ser ofensivo quando a cor é real, de que não havia a intenção de magoar e até de que o negro é o culpado pelo próprio racismo, por se vitimizar.
Ocorre que a cor da pele não pode servir para desqualificar o ser humano, seja que cor for. Ninguém é menos ser humano por ser negro.
É preciso admitir que, em uma estrutura racista, todos (inclusive a população negra, formada por pretos e pardos – artigo 1º, parágrafo único, IV, do Estatuto da Igualdade Racial) estamos sujeitos a cometer condutas racistas, mesmo sem a intenção, mesmo sendo ou possuindo parentes negros, mesmo estando casado(a) com alguém de cor negra, porque isso é parte de uma aberração na cultura do país, que precisa ser mudada. Com ou sem intenção de ofender, vale para configurar o racismo tanto o sentimento da vítima, quanto o mau exemplo para outras pessoas.
Não se está a proibir que um negro seja chamado de negro ou que um trabalho de má qualidade não possa ser criticado; mas que o fato de alguém ser negro não seja usado como critério de desqualificação de qualquer espécie.
Já é tempo de que todos os brasileiros façam um exame de consciência e excluam de seus hábitos ditados e condutas que desqualifiquem as pessoas em função da cor. E, antes tarde do que nunca, em 2010 o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10) deixou claro para toda a sociedade brasileira, para que não pairem dúvidas, de que discriminação racial ou étnico-racial é ‘toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada;’ (artigo 1º, parágrafo único). E é dever do Estado e de toda a sociedade (inclusive empregadores) ‘garantir a igualdade de oportunidades, reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas, econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua dignidade e seus valores religiosos e culturais’.(artigo 2º)”.
Sentença confirmada pelo TRT-MG – A sentença foi confirmada pelos julgadores da 11ª Turma do TRT de Minas. Por unanimidade, acompanhando o voto do juiz convocado Danilo Siqueira de Castro Faria, relator do caso, o voto foi assim proferido:
“O que se percebeu é que a empresa-ré de longe pratica uma cultura de igualdade, de respeito, de não discriminação. Pelo contrário: comete racismo institucional, traduzido em rebaixar os empregados negros apenas em razão da cor de sua pele, o que deve ser repugnado e combatido duramente. Nessas condições, caso o Judiciário não atuasse, seria de se esperar a normalização da atitude preconceituosa representada pela ofensa à pessoa do trabalhador em virtude única e exclusivamente no seu fenótipo enquanto pessoa negra.
Chega a beirar a má-fé a defesa da empresa que apenas se presta à pretensa justificação do injustificável, deixando desamparado o trabalhador. Assim, conforme os critérios já estabelecidos na origem, identifica-se na atitude do superior hierárquico do autor conduta discriminatória, que se ‘normalizou’ na empresa e passou a ser repetida pelos demais colegas que chamavam o autor de ‘preto’ e definiam a qualidade do seu trabalho como ‘serviço de preto’, consistente na presunção, sem fundamentos técnicos, de que o serviço prestado pelo reclamante era inferior àquele prestado pelos demais empregados apenas e tão-somente em virtude de ele ser uma pessoa negra.
Precisam ser repensadas, hoje em dia, formas de legitimar a adoção de estética de resistência por parte de trabalhadores negros, para que consigam se sentir representados no ambiente de trabalho, sem sofrer discriminação e racismo”.
O trabalhador receberá também uma indenização por danos morais no valor de R$ 2 mil, em razão das más condições de trabalho, devido à insuficiência do refeitório e das instalações sanitárias. As partes celebraram acordo.
Fonte: Tribunal Regional do Trabalho 3ª Região Minas Gerais, 18.11.2021
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